Liberada a venda da safra de soja transgênica
Quem voltar a plantar grãos modificados será multado
(Transcrição da reportagem especial do Jornal Zero Hora / RS de 26/03/2002)

Acabou o impasse dos transgênicos para safra de soja que está sendo colhida no Estado. O governo federal deve editar hoje medida provisória (MP) que libera a venda da produção tanto no mercado externo quanto no interno.

O texto da MP, porém, deixa claro que o governo não quer que os produtores voltem a plantar transgênicos na próxima safra e ameaça com multa e perda de financiamento quem continuar cultivando a semente modificada. Depois de semanas de reuniões e de um ultimato do próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, os ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Casa Civil finalmente fecharam, ontem, um acordo que, ao mesmo tempo que tira a corda do pescoço dos produtores, impõe regras.

A rotulagem desta soja é uma delas. A partir da edição da MP, quem quiser vender a produção transgênica terá que identificá-la no momento da entrega na cooperativa, por exemplo. Se mentir e o exame de transgenia identificar traços de organismo geneticamente modificado, o dono da soja pagará multa de 16 mil Ufirs (R$ 17,025 mil). O próprio ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, reconhece que a idéia do governo é estabelecer a rotulagem de toda a soja e derivados que forem transgênicos, de forma que o consumidor tenha acesso a essa informação.

– Quem não cumprir os requisitos para a venda do produto estará sujeito às penalidades – avisa.

Rodrigues reconhece que, no Estado, essa separação do transgênico e do não-transgênico é praticamente impossível nos armazéns. A MP ainda vai enfatizar o desejo do governo de adotar medidas para estimular a exportação desta soja. Rodrigues, no entanto, não soube explicar que ações seriam essas, e reafirmou que o escoamento prossegue também internamente.

O Palácio do Planalto foi o palco de todas as negociações sobre transgênicos, mas não foi o local escolhido pelo governo para detalhar suas ações. O governador Germano Rigotto foi um dos primeiros a conferir o texto da MP, porque participava de audiência com Lula. Preocupado com a necessidade da rotulagem, Rigotto saiu do encontro já pensando na safra 2003/2004:

– A MP dá um balizamento. Mas a solução para o futuro passa pelo Congresso – defendeu.

No final da tarde, o porta-voz da Presidência, André Singer, anunciou que a MP seria publicada, mas os detalhes só foram conhecidos depois, quando o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, apresentou a MP à Comissão de Agricultura da Câmara, ainda sem a assinatura do presidente Lula. Na saída do encontro, irritado, o ministro não comentou a decisão do governo, tarefa que foi assumida pelo ministro da Agricultura. Dentro da comissão, as críticas se multiplicavam.

A principal reclamação dos deputados era sobre a impossibilidade de os produtores plantarem soja convencional na próxima safra, em razão da falta de sementes. Rodrigues, no entanto, afirmou que há semente convencional suficiente.

 A medida provisória
 A decisão do governo e os próximos passos:
• A MP libera o escoamento da safra deste ano no mercado interno e no externo, mas enfatiza o desejo de exportar o produto transgênico.
• Para a próxima safra, está vedado o plantio de transgênicos, de acordo com a legislação em vigor. Quem descumprir a determinação será punido com multa e retirada do financiamento da safra.
• A soja transgênica e seus derivados terão que ser rotulados.
• O produtor que vender soja transgênica precisa identificá-la. Caso contráro, se o grão transgênico for identificado em exames, pagará multa de 16 mil Ufirs.
• O governo se comprometeu a enviar em no máximo 90 dias um projeto de lei ao Congresso para definir a política para as próximas safras.
• A decisão sobre os rumos da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) será debatida com o Congresso.
• Governo e parlamentares ainda aguardam decisão da Justiça sobre a proibição dos transgênicos.
 SAIBA MAIS

Ezídio Pinheiro, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag):
"O produtor poderia estar festejando a liberação, mas a MP não atende totalmente ao pleito. O pequeno usa a mesma colheitadeira em várias lavouras. Quem plantou soja convencional pode ser penalizado, se sobrar resquício de transgênico do vizinho. Apoiamos a rotulagem. A próxima safra ainda será motivo de muita negociação."

José Santana, coordenador regional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA):
"Somos contra o plantio e a venda de transgênicos, mas o governo encontrou a melhor saída ao autorizar a venda segregada. Isso dá mais segurança ao consumidor. Mas ainda queremos a punição para quem estimulou o cultivo desses produtos. E não admitimos de maneira alguma o plantio de soja geneticamente modificada na próxima safra."

Carlos Sperotto, presidente da Federação da Agricultura (Farsul):
"A liberação já era esperada, mas a rotulagem é impraticável. O Estado não tem condições de colher os dois produtos em separado. O governo fez um enquadramento generalizando, penalizando quem plantou o convencional. Houve também a intenção de rotular todo o produto gaúcho como transgênico."

Mariana Paoli, coordenadora de engenharia genética do Greenpeace no Brasil:
"Além de ser uma decisão antidemocrática, passa por cima da sentença judicial que proíbe o cultivo e a venda de transgênicos. A população será obrigada a consumir um produto que não passou por análise de impacto na saúde e no ambiente. Vamos estudar uma medida judicial e nos mobilizaremos para informar o consumidor."

CAROLINA BAHIA/ SUCURSAL/BRASÍLIA


A encruzilhada dos transgênicos
(Transcrição da reportagem especial do Jornal Zero Hora / RS de 06/03/2002)

Os produtos geneticamente modificados, que movem um comércio clandestino, são tema de reunião de Lula com ministros

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará usar todo o seu poder de negociação para aparar as arestas que norteiam a polêmica dos produtos transgênicos dentro do próprio governo. O grupo de trabalho integrado por nove ministérios - criado no dia 18 de fevereiro - fará hoje a sua primeira reunião, sob o comando de Lula, mas não há perspectiva de consenso a curto prazo. Apesar de todos os ministros defenderem a idéia de uma posição única de governo, os ruídos que surgiram nos últimos dias encaminham o assunto para uma ampla e acirrada discussão.

Há, ainda, uma pendência judicial: a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) deverá julgar um recurso da União e da empresa Monsanto somente em meados de abril. Enquanto isso, o plantio e a comercialização de transgênicos estão proibidos no Brasil. O que poderá emergir do encontro de hoje é uma solução definitiva para a safra de soja que está prestes a ser colhida no Rio Grande do Sul. Como há cálculos de que 70% é de semente transgênica, originalmente contrabandeada da Argentina, a não-liberação representaria perdas entre US$ 10,5 bilhões e US$ 13,6 bilhões em exportações.

O prazo de 30 dias para que o grupo de trabalho apresente um posicionamento sobre o cultivo de produtos geneticamente modificados certamente será extrapolado. Durante o governo FH, fechado em favor dos transgênicos, travou-se ampla batalha pública e jurídica envolvendo produtores, multinacionais, ambientalistas, consumidores, governos federal e estadual e poder judiciário.

Agora, há posições sabidamente controversas entre os ministros. O titular da Agricultura, Roberto Rodrigues, mantém a cautela, mas é favorável à liberação dos organismos geneticamente modificados (OGMs). O secretário-executivo do ministério, José Amauri Dimarzio, admitiu que o órgão apresentará a proposta que estabelece a implantação de um período de transição.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assume uma postura diferente. Prefere o princípio da precaução e defende que a posição final deverá ser "do governo que ganhou a eleição". No caso, o PT, partido sempre contrário ao plantio de sementes transgênicas. A passagem do atual ministro das Cidades, Olívio Dutra, pelo governo estadual foi um exemplo de como o assunto é tratado. Embora não tenha conseguido, o ex-governador pretendia transformar o Estado em zona livre de transgênicos.

Ontem, dirigentes da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) sugeriram em Passo Fundo a adoção de um programa nacional de reconversão, para incentivar o plantio de soja convencional, também defendido pelo núcleo agrário do PT.

Glossário

- Soja transgênica: soja geneticamente modificada. A alteração celular é realizada a partir da inclusão de um determinado gene de um outro organismo (como uma bactéria) no DNA (ácido desorribonucléico, substância que compõe os genes) da planta.

- OGM: organismo geneticamente modificado.

- Soja Roundup Ready (RR): ao DNA da soja é acrescentado um gene de uma bactéria resistente ao herbicida glifosato. Aplicado na soja convencional, o glifosato mata a planta.

- Glifosato: princípio ativo do herbicida Roundup, da Monsanto, mas também presente em outras marcas comerciais.

- Ciclo precoce, médio ou tardio: período da germinação até o amadurecimento da planta, que pode ser mais curto ou mais demorado.

- Cultivar: variedade cultivada. Grupo de plantas de uma mesma espécie que apresentam características semelhantes e específicas.

Variedades não-adaptadas trazem doenças

A entrada de variedades irregulares e não-adaptadas ao clima local fizeram ressurgir uma doença erradicada no Brasil na década de 70, a pústula bacteriana. O diagnóstico foi feito pela Embrapa Trigo, de Passo Fundo, que analisou amostras de plantas transgênicas doentes a pedido de produtores.

Na década de 60, a pústula bacteriana dizimava as lavouras e, para exterminá-la, o Ministério da Agricultura passou a exigir que todas as cultivares fossem resistentes à doença, por melhoramento vegetal.

- Foram trazidas sementes não-resistentes a essa doença porque na região para onde elas são indicadas a pústula não se manifesta - explica o pesquisador Emídio Rizzo Bonato.

Embora as pesquisas em campo com soja transgênica tenham sido proibidas judicialmente no Estado em 1998, a Embrapa conseguiu manter experimentos em estufas. Parte da seleção foi desenvolvida na Embrapa Soja de Londrina (PR). A partir de 2000, com uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, as experiências foram retomadas em solo gaúcho.

- Atrasamos a incorporação do gene resistente ao herbicida em cultivares da Embrapa, mas estamos conseguindo preparar novas variedades - diz Bonato.

Campo experimental

Enquanto a guerra judicial sobre a liberação de transgênicos no país é travada em Brasília, os agricultores do Sul testam clandestinamente cerca de 30 cultivares de soja geneticamente modificada vindas da Argentina. Sem estudos ou recomendação técnica oficial, transformaram o Estado em um grande campo de experimentação sem qualquer controle.

Como a soja argentina apresenta um comportamento diferenciado no Estado, as variedades de ciclo de germinação médio no país vizinho são mais precoces aqui, por exemplo. Foi o que ocorreu com a série 6001, 6040, 6401, 6444 e 6445, as primeiras variedades a entrarem no território gaúcho, apelidadas de maradona - por terem vindo da Argentina e pela baixa estatura.

- O primeiro ano foi decepcionante. Ela produziu 16 sacas por hectare, enquanto o normal é mais de 40. Mas agora acertamos a época de plantio - descreve o agricultor A.C.

- A maradona já foi naturalizada gaúcha - brinca o produtor M.A., que há oito anos planta cem hectares de soja transgênica.

O xodó nas últimas duas safras tem sido as cultivares de ciclo médio e tardio, recomendadas para o norte da Argentina, como as das linhas 7000, 8000 e 9000 - esta última leva cerca de 150 dias para ser colhida.

Se antes o agricultor tinha medo de falar para o vizinho sobre seus experimentos com transgênicos, hoje há inclusive dias de campo informais para apresentar as novidades, revela um empresário de sementes de Passo Fundo, que também prefere não se identificar.

Um rentável mercado paralelo
VIVIAN EICHLER/ Casa Zero Hora/Passo Fundo

Acobertados pelo descontrole do plantio ilegal da soja transgênica, agricultores gaúchos alimentam um rentável mercado paralelo de grãos, baseado em riscos e conveniência.

Na ausência de estimativas oficiais para calcular a dimensão desse negócio, produtores descrevem como ocorre a compra e a venda fria de material genético, que conturba a safra no Estado.

Plantar, colher e vender soja nunca deu tanto dinheiro como nos últimos oito anos, época de entrada das primeiras cultivares da oleaginosa resistentes ao herbicida glifosato. Isso vale especialmente para quem não era do ramo de produção de sementes certificadas e se aventurou a multiplicar transgênicos.

– Basta ter uma estrutura de pré-limpeza e um classificador – explica A.C., produtor que se especializou em revender a chamada soja RR (Roundup Ready) para todo o Estado.

As sementes, separadas por variedades e devidamente identificadas, são até enviadas a laboratórios para testes dos níveis de germinação e vigor. A.C. já conquistou a confiança dos clientes e em 2002 vendeu mais de 4 mil sacas que serão colhidas em lavouras que vão desde São Borja até Vacaria. Para 2003, ele quer fazer cerca de 10 mil sacas.

– Aumentei meus ganhos de 50% a 100% – diz o produtor que acompanha o crescimento de seus 300 hectares de soja convencional e 700 de transgênica.
As primeiras bolsas foram compradas em 1997, por cerca de US$ 80 cada. Um ano depois, A.C. comprou cem unidades de duas cargas levadas ao Planalto Médio por um grupo de uruguaios.

Cada saca pode originar outras 40 ou 50 na safra seguinte. Os estrangeiros, que já tinham know how para cruzar as fronteiras trazendo agroquímicos contrabandeados, passam facilmente pela região de Santana do Livramento, por estradas secundárias. Além do Rio Grande do Sul, o grupo transporta para Mato Grosso e Paraná, via Paraguai.

Os atravessadores compram as sementes de produtores argentinos, encarregados de multiplicar cultivares para as multinacionais que detêm a tecnologia no país vizinho. Eles desviam parte da produção vinculada à empresa, deixando de pagar royalties.

– Trazem a semente na embalagem original e oferecem até revenda garantida do que produzimos – revela A.C.

O maior número de negociações, porém, é gerido pelo escambo que disseminou de vez pelas lavouras a soja proibida em território nacional. O produtor que compra a semente guarda para o próximo ano ou negocia com o vizinho. Troca a saca de 60 quilos do grão industrial por uma de 50 quilos de semente ou como convier. A única garantia é a palavra.

– Os produtores negociam entre si. A oferta é tão abundante que a diferença para a convencional é de apenas 20% a 40% em relação ao preço pago na indústria – observa o comerciante de sementes Emeri Tonial, de Passo Fundo.

Um tradicional produtor de sementes fiscalizadas do Planalto Médio, que prefere preservar o nome, decidiu que não fará sementes da safra 2003 e entregará tudo à indústria. O motivo é a baixa procura por soja convencional.

* Colaborou Jorge Correa

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